24.10.20

porta poeta, na estante:

 


Lia Sena é escritora baiana, graduada em Letras pela Uefs, tem quatro livros do gênero poesia, publicados, participação em várias Antologias e Revistas eletrônicas. De vez em quando escreve contos e crônicas.  . Recebeu o prêmio Sosígenes Costa de Poesia em 2018 e o livro premiado, “Na Veia da Palavra”, será lançado pela Editus (Editora da Uesc). Publicou recentemente o Romance, "depois o Amor' (Selo Editorial Ser MulherArte). Integrante do Mulherio das Letras e Articuladora do Mulherio das Letras da Bahia, organizou, participou com poemas e lançou recentemente, a II Antologia do Mulherio das Letras – Bahia, “Tabuleiro de Poesia”. Editora da Revista digital, Vixi Bahia.



posição
 
os derradeiros
estarão ao lado do "pai"
serão os primeiros
ganharão o paraíso
dizem eles
dizem vocês
digo eu
dizem nossas/nossos ancestrais.
enquanto pousamos o livro sagrado sobre a mesa
sobre o colo
entre os braços
ante nossos olhos.
serão as últimas
as primeiras?
as meninas, as mulheres
estarão no colo do senhor?
[dos senhores, dos tios
do conhecido vizinho
do avô]
Estarão curadas
de toda sevícia, malogro
estarão curadas
de toda dor?
os derradeiros
meninos pretos
sorrirão felizes
terão saradas
toda espécie
de cicatrizes
exultarão, enfim?
serão eles, os primeiros?
a menina que não é menina?
o menino que não é menino?
usarão enfim
[sem medo]
o banheiro?
as periferias
as vielas
os becos
reluzirão solenemente?
ofuscarão os condomínios
os clubes
as afrontosas avenidas
benzidas pelo asfalto fino?
as ofertadas varas pra pescar
produzirão os peixes?




dos sóis

de todos os sóis que guardei
sobrou um mais esperto
inquieto, beirando a fonte
bordando as sombras.

de todos os sóis
que incandesci um dia
ele era o que mais ardia
fazia pose/contava histórias
e na memória, inscrevia raios.

de todos os sóis
que salvei das tempestades
ele era o que mais se enrodilhava
entre as minhas pernas
o que mais brincava
de esconde-esconde
mas nunca se escondia.

de todos os sóis
que percorri um dia
ele era o de mais belas paisagens
entontecia e reanimava
guardava imagens
nunca vistas dantes

de todos os sóis
que colhi um dia
foi ele o que
abriguei em meu colo
pus a cabeça em meu peito
fiz adentrar meu corpo/alma
minha calma/insana

ele é o que mais visitou
meus dramas
ocupou meus espaços
abriu meus olhos cegos
deitou em minha cama
e nunca mais sangrou.
-foi ele o que me salvou.





cabem
 
no meu peito albergue
moram uns meninos que sentem frio.
no meu peito alívio
moram meninas que bordam em riso.
no meu peito árido
moram volúpia e cansaço.
no meu peito jardim
brotam orquídeas e prímulas dilaceradas.
no meu peito espada
mora uma guerreira que às vezes chora.
no meu peito espora
moram cavalos que cavalgam livres.
no meu peito abóbora
moram encantadas cinderelas.
no meu peito espera
mora uma vontade insana.
no meu peito aurora
moram bem-te-vis e borboletas
no meu peito angústia
mora uma lágrima que não rola.
no meu peito deusa
moram milagres impensáveis.
no meu peito atalho
mora o encontro mágico.
no meu peito palhaço
moram risos memoráveis.
no meu peito lírico
mora esse olho impreciso
[poesia e miragem]



fim dos tempos

as vestes do santo
estão puídas.
longas, ele as arrasta.
teme a covid
os tropeços
tiros à queima roupa
fogos de artifício .
teme também as bandeiras.
sente que sua imunidade
- mesmo de santo
anda caída.
mas arrasta suas vestes puídas cansadas
não sabe de nada que alivie
o povo perdido.
nenhum milagre no alforje
nenhum deus disponível






das carnes

 
carne viva exposta
carne negra atrás da porta
-onde não importa-
carne indígena
na mata
-onde quem mata, explora –
carne de menina
que queriam menino
carne de menino
que queriam menina
-olha que lindo-
carne que se enfeita
que se transveste em segredo
carne de outros peitos
-sem peito/com peito-
carne que é mais farta
carne que não cabe
na modelo da capa
-carne que excede-
carne que não se mede
que não se encaixa
-por que tão baixa/porque tão alta?
carne que bem merece
carne que bem se atreve
carne que exala
-carne que excita-
(quase não goza)
carne que deita e rola
carne que consola
carne que chora.




6 comentários:

Unknown disse...

Lia é uma poeta imensa! Amo ler seus poemas.

Marta Cortezão disse...

Lia Sena é dona de versos encantadores!

Lilian Goulart disse...

Lia, Lia Sena, parabéns por escrever tão belamente a realidade tão cruel!

Lilian Goulart disse...

Lia, Lia Sena! Obŕigada por escrever tão belamente a realidade tão cruel!

Gilberto Nogueira de Oliveira disse...

Grande Lia.

Rozana Gastaldi disse...

Versos maravilhosos!

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