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26.10.20

porta poeta, na estante:

 

Jorge Augusto é poeta e intelectual. Soteropolitano do bairro da liberdade. Acredita que a poesia é o único beco sem saída no qual vale a pena seguir. Edita a revista brasileira de literatura contemporânea: organismo.

 

 

 

 

 

deu barril

 

fofoca, likes e rivotril

agora a onda

é encher a vida de vazio

 

 

 

 

Oração III

 

Ifá falou no meu ouvido

sobre as esquinas e o perigo

 

que eu tomasse cuidado

com quem está do lado

 

que eu andasse com cautela

por ruas de vias paralelas

 

não seguisse de peito aberto

para esses afetos de circo

 

disse para eu ficar recolhido

no mínimo de espaço deixando

 

o tempo passar esperando as

coisas se moverem de lugar

 

devia amanhecer o dia antes

que eu saisse para caminhar

 

nada de me expor a mira de quem se

esconde no escuro, atrás do muro

 

e atira a queima-roupa tão de perto

como se matasse o próprio ego

 


Dentro de você

 

me escondo

como se fosse o último cômodo

do mundo

 

abrigo pra onde corro

como o touro valente

vai para o abate

 

vala

em que enterro eterno

meu próprio corpo

 

pra sair depois

ex-morto mais

vivo que um recém nascido

 

 

 

Move

 

as

vezes

parar

para

doxa

l

mente

é

n-

os

so

único

movi

mento

pos

sível


24.10.20

porta poeta, na estante:

 


Lia Sena é escritora baiana, graduada em Letras pela Uefs, tem quatro livros do gênero poesia, publicados, participação em várias Antologias e Revistas eletrônicas. De vez em quando escreve contos e crônicas.  . Recebeu o prêmio Sosígenes Costa de Poesia em 2018 e o livro premiado, “Na Veia da Palavra”, será lançado pela Editus (Editora da Uesc). Publicou recentemente o Romance, "depois o Amor' (Selo Editorial Ser MulherArte). Integrante do Mulherio das Letras e Articuladora do Mulherio das Letras da Bahia, organizou, participou com poemas e lançou recentemente, a II Antologia do Mulherio das Letras – Bahia, “Tabuleiro de Poesia”. Editora da Revista digital, Vixi Bahia.



posição
 
os derradeiros
estarão ao lado do "pai"
serão os primeiros
ganharão o paraíso
dizem eles
dizem vocês
digo eu
dizem nossas/nossos ancestrais.
enquanto pousamos o livro sagrado sobre a mesa
sobre o colo
entre os braços
ante nossos olhos.
serão as últimas
as primeiras?
as meninas, as mulheres
estarão no colo do senhor?
[dos senhores, dos tios
do conhecido vizinho
do avô]
Estarão curadas
de toda sevícia, malogro
estarão curadas
de toda dor?
os derradeiros
meninos pretos
sorrirão felizes
terão saradas
toda espécie
de cicatrizes
exultarão, enfim?
serão eles, os primeiros?
a menina que não é menina?
o menino que não é menino?
usarão enfim
[sem medo]
o banheiro?
as periferias
as vielas
os becos
reluzirão solenemente?
ofuscarão os condomínios
os clubes
as afrontosas avenidas
benzidas pelo asfalto fino?
as ofertadas varas pra pescar
produzirão os peixes?




dos sóis

de todos os sóis que guardei
sobrou um mais esperto
inquieto, beirando a fonte
bordando as sombras.

de todos os sóis
que incandesci um dia
ele era o que mais ardia
fazia pose/contava histórias
e na memória, inscrevia raios.

de todos os sóis
que salvei das tempestades
ele era o que mais se enrodilhava
entre as minhas pernas
o que mais brincava
de esconde-esconde
mas nunca se escondia.

de todos os sóis
que percorri um dia
ele era o de mais belas paisagens
entontecia e reanimava
guardava imagens
nunca vistas dantes

de todos os sóis
que colhi um dia
foi ele o que
abriguei em meu colo
pus a cabeça em meu peito
fiz adentrar meu corpo/alma
minha calma/insana

ele é o que mais visitou
meus dramas
ocupou meus espaços
abriu meus olhos cegos
deitou em minha cama
e nunca mais sangrou.
-foi ele o que me salvou.





cabem
 
no meu peito albergue
moram uns meninos que sentem frio.
no meu peito alívio
moram meninas que bordam em riso.
no meu peito árido
moram volúpia e cansaço.
no meu peito jardim
brotam orquídeas e prímulas dilaceradas.
no meu peito espada
mora uma guerreira que às vezes chora.
no meu peito espora
moram cavalos que cavalgam livres.
no meu peito abóbora
moram encantadas cinderelas.
no meu peito espera
mora uma vontade insana.
no meu peito aurora
moram bem-te-vis e borboletas
no meu peito angústia
mora uma lágrima que não rola.
no meu peito deusa
moram milagres impensáveis.
no meu peito atalho
mora o encontro mágico.
no meu peito palhaço
moram risos memoráveis.
no meu peito lírico
mora esse olho impreciso
[poesia e miragem]



fim dos tempos

as vestes do santo
estão puídas.
longas, ele as arrasta.
teme a covid
os tropeços
tiros à queima roupa
fogos de artifício .
teme também as bandeiras.
sente que sua imunidade
- mesmo de santo
anda caída.
mas arrasta suas vestes puídas cansadas
não sabe de nada que alivie
o povo perdido.
nenhum milagre no alforje
nenhum deus disponível






das carnes

 
carne viva exposta
carne negra atrás da porta
-onde não importa-
carne indígena
na mata
-onde quem mata, explora –
carne de menina
que queriam menino
carne de menino
que queriam menina
-olha que lindo-
carne que se enfeita
que se transveste em segredo
carne de outros peitos
-sem peito/com peito-
carne que é mais farta
carne que não cabe
na modelo da capa
-carne que excede-
carne que não se mede
que não se encaixa
-por que tão baixa/porque tão alta?
carne que bem merece
carne que bem se atreve
carne que exala
-carne que excita-
(quase não goza)
carne que deita e rola
carne que consola
carne que chora.




6.10.20

porta poeta, na estante:

 



JOVINA SOUZA  é baiana e mora em Salvador Ba. É graduada em letras vernáculas/ a UFBA. Especialista em Estudos literários/UFBA e mestra em Teoria e Crítica da literatura e da cultura. Publicou o primeiro livro intitulado Agdá em 2012, o Caminho das estações/2018, O amor não está/2019.Em breve lançará seu quarto livro, O levante da Fênix. Tem participado de Feiras literárias e outros eventos de literatura. Seus poemas são estudados em universidades tanto no Brasil como nos EUA.

 


SOU MULHER PRETA

  O meu caminhar é de encontros com seres que odeiam seus traços herdados da minha face.

Com narcisos brancos e machos

e seus espelhos, trazendo sombras para minha janela.

 

Sou uma mulher preta nessas rotas de consciências racistas liquefeitas a parir humanidades esdrúxulas, disfarçadas lanças de mecenas,

ceifando crianças, mulheres e homens.

 

 Minha vida então se faz em crônicas de muitas lutas e de muitos sonhos.

 Vivo a esperança que abraça a luta.

Neste reino de realidades cruas

fico forte é no abraço das pretas irmãs de onde sigo para quebrar os espelhos dos narcisos,

resgatar conforto para o negro feminino e bálsamo para a escuridão.

 

 


PRESENÇAS NA MINHA LETRA.

  Carrego na pele essa negrura de milênios, Presente na escrita e nos sons do meu verbo. A ela, devoto a luta e o afeto, uma mistura do que em mim é carne e existência.

Sou mulher de pensar nas coisas para dizer o que está profundo,

o complexo que se faz simples para o engano insalubre.

Seguindo esse mastro me jogo no passado para devassar os artifícios secretos, cobrindo os códigos que me levantam.

 Trago ordem dos antigos para recolher os sentidos espalhados pelas violências e fazer o levante das suas semânticas.

São brotos que veio de África em diásporas, espalhou-se pelo mundo, alterando línguas crenças e costumes,

criando contextos históricos, luxos e deuses.

Parindo um firmamento de estrelas negras a cada vírgula,a cada palavra do meu texto, cuja aventura é buscar contornos de rostos,

jeitos de sorrir, as mãos que modelaram o belo. Ervas para alegrar, abrir os caminhos e curar. Nesse mosaico de belezas negadas, oprimidas, ainda procuro meu nome no tronco do Baobá.



PREPARANDO O VOO

Não me satisfaz o silêncio.

Interessa-me a palavra funda

no acolhimento dos vivos,

dos que ficam e lutam.

 

olhos estão atentos nos dias,

nos encontros da vida sem guia,

onde a valentia preta pode anular

a violência que nos impõe o cotidiano.

 

Não me apraz o medo nem a ironia

do clarão, cortando o que me liberta.

Desvio dos cortes e protejo meus olhos

da claridade que cega.

 

O que me seduz é abrir os caminhos

para a noite escura que me acolhe

na sabedoria de Nanã.

É lá que minha alma dorme feliz

e acorda

pássaros da manhã.

 

 

  

 

TODOS ESTÃO MORTOS

Não chamo os santos, não visito catedrais.

Trago a alma pagã para frear os divinos,

manter o céu para os justos. Não há tempo

para saber das almas. São dezenas separadas

dos seus corpos todos os dias.

Não ouvi seus versos ou histórias de paixão,

não sei quem amou nem como sonhou o paraíso

ou se lá descansam agora. Nada sei desses alhures.

Procuro desviar da morte, ir onde a vida é viço

e o colorido se levanta.

 

Anseio migrar das tardes monótonas e angustiadas

de melodias fúnebres.Fica-se contando o tempo

nos dedos. Antes de acabar a primeira mão

findam vidas, o horizonte e toda ordem crescente.

Essas tardes são longas.

É a ternura migrando dos corações para nunca mais.

Meus desesperos são as juras de amor que se revelam

no espelho dos cinismos, nas indiferenças aos vivos,

alegorias das verdades dos santos. Nada peço a eles.

 

Não há tempo para rezar sobre milhões de corpos

e o triunfo dos seus algozes.

Procuro quem tem carne sobre os ossos e vive

encantado pelo amor que é simpático ao sangue

vazando das nossas carnes.

Eu poeta me arrisco e vou ao encontro marcado

com as mãos negras, milhões delas fazendo vida!

E seus dedos infindos de possibilidades.

Só o vazio. A longa espera nas tardes monótonas.

Os santos sei que não ouvem. Os bons oram para os santos! 

 E os que dizem lutar só chegam tarde.

Todos estão mortos.

 

 

 

 

   

HÁ QUE CHEGAR O FOGO

Vou para o mistério das auroras,

um detetive a desvendar enigmas

sobre imagens exaustivas de sonhos

cansados,

mas corajosos na jornada da vida.

Sonhos em pedaços, recompondo-se

atônitos,

nos rituais dos desesperos e das ausências

implacáveis.

Vozes nada dizem dos pedaços que derramam

ódios e mágoas. Sementes nesse chão estéril

onde viver é ato de heresia.

Vejo, sob as cinzas, escombros recicláveis

para o triunfo do fogo, para a vermelha chama

tomar o lugar do vazio.

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